cronicamente online #008
como a internet pode preencher o vazio da solidão? José Fernandes e o seu TikTok do "charme"
e aí, cronicamentes! como vocês tão?
semana agitada, ein?
por isso demorei um pouco mais pra mandar a newsletter de hoje.
(ela vem carregada de emoção, então respira fundo e vem comigo)
se esse for o primeiro texto que você tá lendo, sinta-se em casa.
tem outras edições espalhadas por aí, tipo easter eggs por esse grande site chamado Substack.
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(vai que alguém precisa ler isso hoje).
essa semana um vídeo do TikTok me deixou triste.
era um vídeo de alguns netos rindo de uma avó “apaixonada” por uma pessoa da internet.
(só vou deixar a imagem do vídeo aqui. nada de link dessa vez.)
o vídeo que a avó assistia? um clássico do algoritmo romântico: um homem bonito demais (spoiler: provavelmente não era), flores na mão e voz suave falando: “você merece ser feliz, princesa”.
a trilha? possivelmente o instrumental de lady in red.
nos comentários, entre risadas e piadas, várias mulheres escrevendo:
“homens assim só em sonho 😢💔”
e foi assim que eu caí num mundo novo online.
um universo paralelo dentro do TikTok.
pelo que entendi, liderado principalmente pelo José Fernandes, um “galanteador digital” (real, ein? não é IA) que posta vídeos dizendo coisas como “bom dia, princesa, você merece um amor leve” enquanto sorri de lado, em câmera lenta, num filtro sépia.

ele tem quase 2 milhões de seguidores, a maioria mulheres acima dos 50.
seus vídeos acumulam centenas de milhares de curtidas e, nos comentários, a audiência responde com emojis de flor, coração roxo e frases como “Deus te abençoe, homem lindo”.
alguns perfis também comentam “sou casada, mas te assisto escondida rsrs”.
outros vão direto ao ponto: “me chama no zap, estou sozinha”.
o TikTok desse “amor pra 50+” virou estratégia de conteúdo: hashtags bombadas, criadores focados nisso e feeds dedicados às mensagens de amor.
por exemplo, #LoveOldWomen tem 66,7 milhões de posts.
canal como “Brazilian Women over 60” somam seguidores em massa, e tags como #singleoldwoman e #olderbrazilianwomen crescem em views diariamente . são mais de centenas de perfis dedicados. e esse tipo de vídeo (como o do José Fernandes) tem engajamentos acima da média: os conteúdos chegam a 50 mil curtidas e +10 mil comentários com frequência (o sonho de qualquer influenciador médio).
todos são focados em entregar afeto, atenção e aquela sensação de “alguém tá me vendo”. os “Josés Fernandes” do TikTok sabem que solidão = negócio de retenção: enquanto vídeos de humor têm queda rápida, esses de “amor de tela” geram 200% mais tempo médio de visualização entre +55, segundo dados internos da plataforma (!)
mas qual o problema? nenhum.
até virar um problema.
vale lembrar que esse tipo de conteúdo não tem crescido por nada: mais de 31% dos usuários brasileiros com mais de 55 anos acessam o TikTok diariamente, e o crescimento dessa audiência foi de +92% entre 2022 e 2024 (DataReportal). e é bom saber que, independentemente da idade, as pessoas estão conectadas, buscando conteúdos, querendo interagir.
mas… o algoritmo tá lá agindo e pode servir como porta de entrada pra algo mais perigoso: golpes sentimentais.
o vídeo vira conversa, a conversa vira vínculo, e logo vem o pedido de ajuda, a história do “problema urgente”, o clássico “manda um pix só dessa vez”.
isso porque o golpe do amor (aquele onde alguém se passa por um parceiro romântico e conquista a vítima antes de pedir dinheiro) encontrou terreno fértil justamente entre as mulheres mais velhas online.
segundo a Febraban, idosos representam mais de 30% das vítimas de fraudes digitais no Brasil, e uma parte significativa desses casos envolve relações emocionais simuladas.
nos EUA, a Federal Trade Commission afirma que os romance scams causaram mais de US$ 1,3 bilhão em perdas desde 2020, com mulheres acima dos 60 entre os principais alvos.
e tudo começa igual: um vídeo carinhoso, uma mensagem direta, a construção lenta de uma conexão.
porque o golpe não começa no inbox: ele começa no afeto.
e esses vídeos, por mais inocentes que pareçam, são o script perfeito.
*vale ressaltar que o coitado do José Fernandes não é um golpista, ein? ele só achou o nicho dele. o golpista é quem tá na DM, na mensagem carinhosa do WhatsApp, quem realmente interage…*
o José Fernandes até já deixou claro pra todo mundo que ele é um personagem. principalmente depois desses vídeos saírem da “bolha”.
(o vídeo que ele criou se explicando tá aqui)
AGORA VEM A HORA DA TERAPIA! (pra mim, né? hahaha)
porque esse “nicho” tem tanto engajamento?
como alguém que gosta de comportamento humano (acima de tudo) e tenta entender um pouco do porque das coisas, fui atrás dos dados: segundo o IBGE, mais de 60% das mulheres acima de 60 anos vivem sozinhas, e 1 em cada 3 relata sentir solidão com frequência.
é uma estrutura social que aprendeu a esconder a solidão da mulher madura como se fosse um problema pessoal. enquanto o homem envelhece e continua socialmente desejável (“maduro”, “galanteador”, “experiente”), a mulher passa a ser tratada como invisível.
mas isso tem mudado (aos poucos, mas tem!).
mesmo com o estigma, cada vez mais mulheres estão se permitindo falar sobre desejo, afeto, carência (…) e buscar novos vínculos, inclusive no digital.
uma pesquisa do Datafolha (2023) apontou que 35% das mulheres com mais de 55 anos estariam abertas a novos relacionamentos, mas não se sentem representadas nos espaços tradicionais.

é aí que entram os aplicativos de relacionamento (<3), os vídeos do TikTok e os comentários nos perfis do “José Fernandes do amor”: espaços digitais que funcionam como zonas de afeto seguro, onde elas podem se expressar sem necessariamente lidar com julgamentos presenciais - que já viveram a vida inteira.
a internet, nesse contexto, virou o que a sociedade não foi: um lugar onde elas ainda podem ser românticas, engraçadas, bobas, desejantes - e onde elas são, finalmente, respondidas.
então vou repetir (pra mim, de novo): qual o problema?
o problema tá no início do texto. no comportamento de quem julga.
no print do comentário da Dona Suely mandado no grupo com um “kkkk socorro”.
no “essas velhas acreditam em tudo” dito entre um monte de risada. no olhar cínico que a gente desenvolveu pra se proteger, mas que também virou desculpa pra desumanizar quem ainda tem coragem de sentir.
porque, no fim das contas (e se der tudo certo), todo mundo vai envelhecer.
e isso é incrível!
e se o seu futuro digital for deixar comentário num vídeo que te faz sorrir, qual é o problema nisso? talvez a Dona Tereza só esteja fazendo o que todos nós estamos tentando: se sentir vista em meio a tanto ruído.
talvez o algoritmo dela só seja mais honesto.
menos meme, mais esperança. menos ironia, mais coração.
e talvez (só talvez) a internet precise mais da Dona Tereza do que de mais uma dancinha com legenda passivo-agressiva.
e mais um talvez (vale?), as marcas também podem olhar pra isso de uma forma mais sensível e cuidadosa, ajudando a mudar esse comportamento dos últimos anos.
porque não basta falar de inclusão se a campanha só tem jovem bonito em rooftop com filtro quente.
afeto também é pauta de negócio.
as mulheres mais velhas movimentam bilhões na economia, são donas da própria renda, decidem compras familiares e estão cada vez mais conectadas.
PEGA ESSA!
de novo, sou um defensor de dados e comportamento humano. nichos são criados diariamente dentro do TikTok, Twitter/X ou qualquer outra rede social porque as redes sociais são reflexos da nossa sociedade. por isso, vale sempre se ligar nas conversas e, se tiver curiosidade, mergulhar no mundo dos Josés Fernandes e de outros nichos -até no das mulheres de preso (link aí pra quem quiser gastar mais uns minutos) - pra entender um pouco mais sobre como as coisas funcionam.
nos vemos na quarta que vem!
quem chegou até aqui e AINDA não se inscreveu, clica aí e ajuda “nóis”:
obrigado, Zé!
Caramba, Zé, como um heavy user de tiktok, estou muito surpreso por não fazer ideia do nicho “José Fernandes”. Isso só mostra como o algoritmo realmente fomenta aquilo que a gente busca, gosta e alimenta de alguma forma. Tomara que as donas Terezas não estejam se deparando com os Josés Fernandes do tigrinho ou coisa do tipo por aí. Porque se depender do algoritmo :(